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segunda-feira, 25 de maio de 2009

Contratempos


Amava-o intensamente. Tanto que não pouparia esforço algum para salvá-lo. Atuando profissionalmente seu diagnóstico foi correto e preciso. O tempo, aparentemente, estava do lado deles. O mesmo não poderia ser dito com relação ao prognóstico: era pessimista. Disso sabia com total clareza. No entanto, não seria nenhum empecilho. As ferramentas disponíveis pareciam, para ele, suficientes para evitar o pior. Cumpriria todos os passos necessários para diminuir qualquer probabilidade de erro ou omissão, porque sabia que qualquer detalhe que passasse despercebido poderia ter uma importância decisiva. Nesse momento, o estado era crítico e requeria internação e intervenção cirúrgica imediatos. Naturalmente, assim procedeu.

Alertou que a cirurgia seria deveras arriscada. Envolvia um procedimento técnico com estatísticas de sobrevida bem sombrias. Mas naquele momento a necessidade de atuação era premente. A equipe que assumiu era experiente e competente, disse, tentando tranquilizar a todos. Acompanhou atentamente todos os passos da técnica cirúrgica, que para surpresa da própria equipe, transcorreu sem maiores problemas. Necessitava, naquele momento, ficar em terapia intensiva até que os efeitos da intervenção cirúrgia fossem, ao menos em parte, dissipados.


A profunda cicatriz no meio do peito simbolizava bem tudo o que passaram nessas últimas horas. Aparentemente, a fase mais aguda havia ficado para trás. À saúde só damos o devido valor quando estamos na cama de um hospital, disse várias vezes, praticamente afônico na tal cama de hospital. Quero sair daqui e ir para casa, para, se tiver que ser, morrer em paz, tentava gritar outras vezes sem muito sucesso. Felizes são os que podem gozar de tal privilégio, podem pensar alguns. Mas os profissionais diziam que tal "confusão mental" era esperada pela baixíssima saturação de oxigênio do sangue e consequente alta de CO2. Para ter o poder de ir para sua própria casa precisava ficar curado. Era o desejo de todos. E a cura, nesse momento, parecia mera questão de tempo.

Cada indivíduo, porém, responde de uma maneira diferente a qualquer intervenção terapêutica. Alguns dias depois - já em um quarto fora da terapia intensiva - o profissional responsável pelos curativos notou uma certa resistência e demora ocorrendo para a cicatrização natural da ferida. Ele, sempre ali do lado, acompanhando todas as alterações do prontuário notou que havia, de fato, uma leve alteração em alguns indicadores e notificou o profissional e a equipe sobre esses detalhes. Cauteloso como sempre, propôs à equipe a realização de mais um exame de sangue. Tal exame, feito de forma mais minuciosa, constatou: o local afetado pela intervenção estava com uma severa infecção. A essa altura, a contagem de glóbulos brancos apenas evidenciou o que sua pele expurgava. E conforme o tempo passava, mais debilitado ficava, sobretudo por conta de toda a dificuldade na alimentação, durante um período significativo. A recomendação não poderia ser outra. Precisaria submeter-se a um tratamento com antibióticos extremamente potentes. Para isso era preciso voltar para a terapia intensiva.


A capacidade de reação do corpo humano, no entanto, tem um limite. Mesmo sabendo disso, acreditava tanto no próprio potencial e no poder da terapia, que ele cria que poderia fazer ou pensar em algo que pudesse salvar o outro, fazendo tal quadro se reverter. Um pensamento intuitivo latejava e dizia que eles precisavam mudar de hospital. Perfeccionista que era, não estava satisfeito com a qualidade dos serviços daquela unidade. Mas não conseguiria com argumentos transmitir para as outras pessoas envolvidas o quanto ele acreditava que isso era necessário para a melhora daquele outro que ele tanto estimava. Até porque, ele mesmo sabia da complexidade que uma remoção desse porte requeriria. Sentia-se preso, mas não deixava de pensar em nenhum momento em algum método que pudesse interferir de forma favorável nesse caso. Se quisesse fazer o que achava que precisava ser feito precisaria armar esse esquema "por fora".

A convicção cega de que precisavam migrar para um outro instituto de saúde o impeliu a fazê-lo, de forma absolutamente independente. Pode ser complexo, mas não impossível, pensou.
Pela sua plena dedicação havia conquistado a confiança de alguns membros da equipe responsável. Sabia exatamente com qual deles poderia contar. Elaborou um intrincado plano, pensando até nos menores detalhes, para que nada saísse do esperado. Contactou a outra instituição e com muito custo conseguiu convencê-los a receber esse novo paciente, que estava em estado grave. A unidade móvel precisaria também ser especial pois, a essa altura, a respiração só ocorria com a ajuda de aparelhos. Não fosse removido agora, não seria nunca.

Entre o plano e a execução existe um entrave crítico: a burocracia. Para passar por esse obstáculo havia planejado a remoção durante o final de semana. Para que tivesse acesso à unidade móvel de atendimento precisaria simular uma situação que requisesse a imediata remoção do paciente ou talvez até de todos os pacientes daquele hospital. Seria uma atitude drástica? Sem dúvida. Mas não conseguia assistir o lento processo de degradação da saúde de seu ente tão querido sem fazer nada. Aquele ambiente não estava colaborando e ele sabia que havia outros lugares melhores que aquele, lugares esses que poderiam oferecer um serviço e atendimento com qualidade bem superior.


Foi então que, no dia que ele havia programado, enquanto ele falava ao celular com um amigo, explicando a delicada situação pela qual estava passando, o alarme de incêndio disparou. Ele ficou gelado, seus lábios subitamente embranqueceram. O telefone foi direto ao chão. Já encadeando idéias, antes de pensar em outra coisa - até mesmo em se salvar - contactou a unidade móvel para pedir imediatamente a transferência. Eles já estavam a caminho, foi a resposta que recebeu. Meu plano não tinha nada a ver com incêndio - estranhou, falando sozinho. Até aquele momento, ele sabia que não seria necessário chegar a tal extremo. Deixou os devaneios de lado pois o que ele precisava saber naquele instante era o que estava ocorrendo de verdade, já que poderia ser algo grave ou até um alarme falso. Saiu do quarto bastante agoniado, buscando alguma informação, uma vez que não ouvira nenhuma explosão nem havia sinal de fumaça e fogo em lugar algum. O lugar estava semi-deserto como de costume nos finais de semana e ninguém sabia informar o porquê da ocorrência desse alarme. Não havia indício de incêndio em nenhuma das repartições do hospital. Mas o alarme persistia.

A ambulância chegou em 11 minutos, cronomentrou ele. A remoção deixara de ser uma opção para tornar-se necessária. E tudo estava pré-programado de acordo com o que ele havia estabelecido no seu plano, apenas antecipando-se algumas horas. A equipe intensivista do outro hospital já estava de plantão, pronta para receber aquele paciente em especial. A coincidência o intrigava mas ele pouco podia pensar sobre isso, envolto que estava com a correria da própria transferência. Encaminhou-se ao hospital de destino e logo na chegada, sem surpresa alguma recolheu os quilos de papel e guias de saúde que precisaria assinar. Sabia que precisava, além de tudo, torcer muito para que a transferência ocorresse com sucesso, pois envolvia um risco enorme.

Acreditava piamente que se tudo ocorresse bem até ali as chances de recuperação seriam muito maiores. A transferência realmente fora muito delicada, porque apesar de ser um processo que necessita ser feito com extrema rapidez, demanda cuidados, e nesse caso demorou bastante.

Poucos sabiam da existência do tal plano que nem precisou ser posto em prática para ter seus efeitos realizados um por um, quase que em cascata. Um desses era ele, o avô, que assim que recobrou um pouco a consciência, juntou todas as suas forças, virou-se para seu dedicado neto e disse:


- Meu filho, você conseguiu o que a gente queria! Tenho muito orgulho de você! Diga a todos que nossa família vale ouro!

Após dizê-lo, ...


Dedicado a um grande amigo e ao seu avô

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