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quarta-feira, 4 de agosto de 2004

Pensamento e Realidade

A mente humana é constituída de tal forma que não consegue raciocinar senão sobre símbolos acumulados na memória -- jamais diretamente sobre os dados sensíveis, exceto na medida em que a forma deles coincida com a de algum símbolo prévio. Os símbolos, por sua vez, provêm dos dados sensíveis, mas não em linha direta: é preciso um longo e complicado processo de acumulação, filtragem e síntese imaginativas – inconsciente ou semiconsciente na sua maior parte – para que a infinidade de elementos colhidos pelos sentidos se organize numas quantas formas estáveis. São estas formas que, condensadas em nomes ou em qualquer outro tipo de sinais reconhecíveis, constituirão a matéria-prima do “raciocínio”. Este, portanto, só se refere a alguma “realidade” de maneira secundária e indireta, isto é, através das evocações que os nomes sugerem à memória e à imaginação.

O raciocínio, em si, é coisa simples. Até um gato resolve problemas elementares de causa e efeito, proporções, identidade e diferença, etc. Mas gatos, macacos, jumentos e tutti quanti só raciocinam sobre sinais visíveis, presentes fisicamente na situação. O pensamento humano abrange um domínio incomparavelmente mais vasto, não só no espaço e no tempo mas em graus de abstração que vão além do espaço e do tempo. O pensamento animal é bastante certeiro porque seu material é limitado. O humano, praticamente ilimitado, está por isso sujeito a uma dose ilimitada de erros. Os erros raramente estão na mecânica do raciocínio, que não é diferente em nós e nos animais. Está na referência do pensamento à realidade, que é direta e simples no animal, indireta e assustadoramente complexa no homem. Naquele, a memória e a imaginação são, por assim dizer, passivas, ou melhor, reativas. Limitam-se a fornecer as formas estritamente indispensáveis ao reconhecimento dos dados presentes por semelhança com dados antigos. Já a imaginação humana produz formas e analogias que transcendem infinitamente a situação presente, concebendo cenas passadas jamais vistas e devassando o véu do tempo em busca de mundos futuros, de mundos meramente possíveis, de mundos dentro de mundos e até de um mundo para além de todos os mundos, chamado “eternidade”. Para lidar com tudo isso racionalmente, ele não dispõe senão de uma lógica bem parecida com a dos gatos.

Esse é o nosso problema: imaginamos como anjos, mas pensamos como gatos. O resultado é que o mundo dos nossos raciocínios é estreito, pobre, deficitário em comparação com o de nossas percepções e fantasias. Desde os tempos de Neanderthal a espécie humana tem feito o diabo para aprimorar seu raciocínio por meio de artifícios. Rabiscos nas cavernas e o advento da linguagem articulada – é impossível saber o que veio antes -- foram as primeiras modalidades de pensamento artificial. Logo veio uma terceira, não sei se junto com as primeiras ou depois delas: inventar narrativas, guardá-las na memória e repassá-las às gerações seguintes. Sem isso não haveria comunidade organizada nem a descoberta da contagem, princípio da aritmética. Lendas e mitos fundam as civilizações. Logo veio a arte de discutir nas assembléias, que os gregos condensaram na técnica retórica. Da retórica nasceu a dialética de Sócrates e Platão – a arte de comparar vários discursos retóricos, em busca do mais certo --, e desta a lógica de Aristóteles, que os escolásticos, passados dezesseis séculos, aperfeiçoaram muito. O último progresso da arte de pensar, até agora, veio no século XVII, com Leibniz, que teve a idéia de fundir lógica e aritmética, ou melhor, lógica e álgebra. Daí nasceram a lógica matemática, erroneamente chamada lógica simbólica, porque toda e qualquer lógica opera com símbolos, e a linguagem dos computadores, erroneamente chamada pensamento artificial, porque não é mais artificial do que o rabisco do homem de Neanderthal na parede da caverna. Todos os artifícios são... artificiais. Natural, só o pensamento dos gatos. Se o homem inventou tantos artifícios, foi porque entendeu que pensava como um gato e que isso não bastava para uma criatura com a sua amplitude de imaginação.

Mas todo esse progresso é bastante ilusório. Só um número ínfimo de seres humanos absorve, em tempo de usá-los, os novos artifícios de auxílio ao pensamento. E, quanto mais poderosos esses artifícios se tornam, mais complexa e dispendiosa é a sua transmissão às gerações seguintes, maior portanto a possibilidade de confusões no seu uso, somando-se à dificuldade anterior e natural, já considerável, de articular pensamento e realidade.

Na esmagadora maioria dos seres humanos, o abismo entre o percebido e o pensado continua imenso e praticamente intransponível. No caminho que vai dos sentidos ao raciocínio, eles se perdem na trama da imaginação. Vêem a realidade com os olhos da cara, mas não conseguem pensá-la. Pensam outra coisa, sugerida pela imaginação ou repetida pelo automatismo da memória. Mas não sabem que estão fazendo isso. Iludidos pela celebração geral do progresso dos artifícios, acreditam que se beneficiam dele por mero automatismo coletivo, por uma espécie de direito hereditário, sem nenhum esforço pessoal de adquirir o domínio desses artifícios. O efeito dessa ilusão é notável. Quando vários pensam igual ou parecido, chamam a isto “realidade”, e mergulham dentro dela, esquecendo a realidade originária, negando sua existência ou alterando-a na memória para torná-la parecida com aquela que criaram. Põem nisso um empenho admirável, chegando a matar os que se recusam a entrar com eles na realidade postiça. Com o nome de dialética hegeliana, de marxismo, de desconstrucionismo ou sem nome nenhum, a realidade postiça acaba se tornando um novo artifício de pensamento, um método, sobrepondo-se a todos os artifícios e métodos anteriores, dos rabiscos do Homo neanderthalensis à lógica matemática. Mas estes eram conscientemente artifícios de pensamento, não se confundiam com a realidade, ao passo que a nova realidade não consente em ser apenas pensamento artificial. É realidade artificial, e, como tal, não pode admitir a existência de outra realidade fora dela mesma. Daí sua necessidade de negar toda realidade natural, seja na forma de experiência presente, seja em qualquer das versões anteriormente conhecidas. Estas são então declaradas tão artificiais quanto ela mesma. Transformam-se em “produtos culturais” das eras passadas. A partir desse momento, todos os artifícios de pensamento se tornam impotentes. Destinavam-se a preencher o hiato entre pensamento e realidade, agora servem apenas para integrar harmoniosamente o pensamento no corpo da realidade artificial. Já não há portanto verdadeiro e falso, há apenas o adequado e o inadequado, o conveniente e o inconveniente, ou, como os nomeou o educador soviético Makarenko, o politicamente correto e o politicamente errado. Hitler preferia “socialmente” em vez de “politicamente”, mas a diferença é, a rigor, nenhuma. Em ambos os casos, a realidade fica mais distante de nós do que jamais esteve do homem de Neanderthal.

Olavo de Carvalho
Bravo!, julho de 2004

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