Osama acabou com o 'happy end'
Eu já escrevi aqui que o atentado às torres em NY foi um show de cinema. Foi um massacre onde a visibilidade era essencial para o bom resultado.
Baudrillard também disse isso, mas escrevi antes, modestamente. Era necessário que tudo fosse visto, ao contrário, por ex, do holocausto, quando a ocultação dos fornos era fundamental.
No 11 de setembro, não. Era preciso que ficasse gravada aquela cena do que vai se repetir por toda a eternidade, mostrando o dia em que tudo mudou para sempre.
O que Osama inaugura em 11 de setembro foi um período histórico sombrio de "desconstrução". Bush aproveitou o pretexto e iniciou também a desconstrução da democracia americana, há tanto tempo desejada por seus mentores, como Karl Rove, Cheney e outros. Para isso, ele passou a usar a "política do medo" e a explorar o fato de que é insuportável para o americano problemas não resolvidos. Eles tem de "resolver" os problemas e, no caso das torres e de Osama ,não há solução possível. Já era. Eles pensavam: "Aqui está tudo sob controle, tudo tem princípio meio e fim e termina como nós queremos."
Osama criou um problema insolúvel com o terrorismo suicida. Osama acabou com o conceito de "happy end". A "cultura da certeza" americana foi humilhada por Osama.
Ninguém pode controlar essa guerra sem rosto. Diante dessa impotência, Bush e a direita partiram para um monolitismo paranóico, masoquista, partiram para rever todas as complexidades democráticas, como se elas fossem formas de "fragilidade", de vulnerabilidade, buracos por onde poderia entrar o inimigo.
Todos os movimentos, de um lado e de outro, são regressivos. Osama quer voltar a um islã fundamentalista e, assim, estimula a direita americana de Bush a rever os avanços ocidentais. A direita cristã no poder quer a volta do ego sem inconsciente, quer a volta de Adão e Eva e do homem mínimo diante de Deus. "Give me that old-time religion!"
Não há retorno para o que já está acontecendo. Marx diz que "a economia é uma espécie de luz que dá a coloração do momento histórico, onde tudo acontece com algum reflexo dela". Osama não veio por acaso do deserto. Nem Bush. Ambos são os fetos de um ventre histórico grávido a partir do capitalismo mudado pela globalização, ambos são frutos de um capitalismo gelado, financeiro, não produtivo, que se esvazia a si mesmo, um capitalismo que se auto-aliena e que favorece a manipulação política por gangues como a de Bush.
Só que Osama anseia por um divinismo restaurado. E Bush, em nome de um Jesus mecânico, quer ser o comandante de uma era morta para a razão. Ambos desejam arrasar com uma realidade mundial multiprodutiva, global, inapreensível, o que faz as massas desejarem uma uniformização, algum simplismo ideológico ou clareza religiosa. Ambos desejam redirecionar o progresso e aprisioná-lo num esquematismo religioso e obscurantista. O obscurantismo e a ilusão religiosa são uma vontade mundial. Osama e seu fiel criado Bush vêm satisfazer essa necessidade. Eles vieram para encerrar qualquer esperança platônica, vieram para negar todos os livros, todos os quadros, todos os avanços realmente democráticos que poderiam criar uma revolução laica no futuro, quase a realização de um sonho meio "nietzschiano" de um viver "artístico", um presente dançante e inventivo, sem paraíso, mas também sem desespero.
Assim como o islâmico bate com a cabeça no Corão, nas "madrassas" onde aprendem a ser homens-bomba, Bush (e seus asseclas) quer se vingar dos inteligentes, dos bons alunos que o desprezavam em Yale, onde ele assistia às aulas de ressaca e arrotando de tédio, como nos contam seus professores.
Osama e Bush vieram para trazer de volta a paz da ignorância, o sossego da estupidez, a calma da fé em Alá ou Jesus, eles vieram para nos trazer de volta a proibição, a repressão. A democracia angustia as massas ignorantes.
Assim como Osama quer criar o califado de Alá, quer impedir que o Ocidente continue a poluir a pureza do islamismo "waabista" que ele professa, ameaçado pela nossa liberdade e libertinagem, o Bush quer impedir a continuação da grande e verdadeira América que terminou com Clinton, uma América autocrítica, buscando um diálogo multilateral com o mundo.
Durante o debate, havia momentos em que Kerry soava quase nostálgico, querendo defender os valores maiores ocidentais, europeus, etc... Bush arquejava, arfava de impaciência diante das palavras mais complexas do opositor democrata. Enquanto o Kerry falava de um futuro "em aberto", um processo e não uma "solução", Bush se defendia com palavras mágicas, holísticas, fervorosas como: "No fundo do coração eu acho... Eu creio, eu tenho certeza que...." Bush discutiu sem nenhum embasamento sob seu desejo, apenas a reafirmação da teimosia de achar que tem de perseverar no erro para resolver o problema. Senão houver solução para o terror, que a América seja então trancada num "shelter" mais profundo, que o Desejo seja uniformizado, que a democracia tradicional seja limitada, para que uma nova nação "forrest-gumpiana" floresça, medíocre e sinistra. Bush quer enterrar a era da autocrítica e dos direitos civis, que existiu até Clinton, último filho dos anos 60, até que foi finalmente esmagado por Ken Starr e pela boca traidora da republicana Monica. E agora esse flagelo deve vencer as eleições. Nos USA, não há apenas uma campanha política. Há um golpe de direita em andamento contra a democracia dentro e fora de casa. God save America.
Arnaldo Jabor - estadao.com.br - Caderno 2 - [05/10/2004]
Marcadores: educação, não-autorais
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