Um programa alternativo: Usina de Pensamentos
A cena passou-se em um dia qualquer da década de 1970, fase aguda da repressão militar. O professor de Geografia foi chamado à sala da diretora, que, além de ter seu papel de gestora, comandava a orientação pedagógica e educacional, a Coordenação e muitas outras funções. Não que não houvesse pessoas para realizá-las. Elas existiam, é claro, mas exerciam seu trabalho segundo regras, fundamentos, princípios e justificativas da diretora e dona do pedaço. Travou-se o seguinte diálogo:
— Professor, chamei-o aqui porque é agora necessário ministrarmos aulas de Educação Moral e Cívica e o escolhi para fazê-lo.
— Mas, por que eu, senhora diretora? Não existem por acaso outros professores mais adequados? Não ministro bem minha disciplina? Não seria desperdício usar-me para a rotina, para o servilismo a uma programação imposta?
— Não, meu caro mestre. Se escolher um qualquer, ele por certo fará o que os militares desejam. Ministrará a disciplina sem sabor, sem criticidade, sem criatividade. Fará dos estudantes apenas mentes robotizadas pela ditadura. Escolhi o professor que mais admiro, aquele que mais respeito e sei que ele, e somente ele, será capaz de criar um programa alternativo: ministrar essa tal de Educação Moral e Cívica com a cara que a imposição requer, mas, na sutileza das entrelinhas, fazer os alunos pensarem e despertar neles a criticidade... E, quando se supõe que estes levam para casa uma bagagem sem cor; na realidade, eles, ao contrário, levam na cabeça idéias cheias de vida e de surpresa. Prepare o programa, apimente reflexões, faça surtir a criatividade, mas organize diários de classe com a cara que o governo impõe.
Dois meses depois desse diálogo, a escola mudou. As aulas de Educação Moral e Cívica passaram a ser as mais procuradas e discutidas, deixando escondidas em um manto de pureza as idéias mais expressivas, os pensamentos mais ousados. Para quem olhasse a escola de fora, lá estavam os conteúdos curriculares convencionais e também a Educação Moral que a ditadura sugeria; entretanto, quem a assistisse de perto saberia que a escola transformara-se em uma fábrica de reflexões, um laboratório de experiências. Mais tarde, “filhos” dessa disciplina, surgiram projetos de defesa ambiental, ações de envolvimento comunitário, campanhas de apoio à construção da dignidade e da honra e serviços assistenciais voluntários.
Os tempos mudaram! Não mais existem, nos currículos, uma disciplina imposta, um programa para se praticar a bajulação e se exaltar a autoridade, uma mordaça à liberdade do pensar. Mas será que a criatividade de uma programação alternativa nasce apenas em tempos de censura? Será que, se convocarmos os professores mais críticos e mais brilhantes, sugerindo-lhes a “criação” de uma disciplina alternativa, não ocorrerão idéias experimentáveis, projetos plausíveis? Será que a escola pode exercer a busca do diferente e do inusitado somente em tempos de terror?
Acreditamos sinceramente que não, assim como não menos sinceramente pensamos que o “aperto” do currículo não é tão cerceado de limites que impeça o criar de alguma outra disciplina que possa ensinar relações interpessoais, ações concretas de defesa da cidadania, projetos que exercitem alternativas de pensamento mediadas por espaços de reflexão, análise crítica do cotidiano, atos e procedimentos que solidifiquem amizades, aprendizagens significativas sobre um melhor comer e se exercitar, para um melhor viver. É importante pensar que a tecnologia tornou a informação mais acessível e que, por mais intensa que ela seja, jamais poderão ser impostas, fazendo com que exista conhecimento sem compreensão, aprendizagens que engessam a mente e impedem a significação e a contextualização. Por mais matéria que se tenha, sempre haverá tempo para melhor as discutir.
É chegada a hora de uma nova alternativa no educar. Não seria o caso de se buscarem, nos professores mais criativos e mais reflexivos, os fundamentos de uma usina de pensamentos? Não poderiam eles, voluntariamente, criar modelos e sugeri-los à Coordenação? Se for necessário (e, em último caso), esses professores podem fazer de conta que o tempo não passou e que a democracia não sepultou a criatividade.
Celso Antunes
Marcadores: não-autorais, usina
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