O não tão livre arbítrio
Imagine a mais deliciosa sobremesa que suas papilas gustativas podem conceber. Acrescente uma camada extra de cobertura de chocolate. Agora imagine o garçom lhe estendendo uma generosa porção dessa iguaria. Você consegue recusar?
Se, como a maioria dos seres humanos, não resiste à tentação, pode perguntar-se onde diabos está o livre arbítrio de que tanto falam filósofos e padres. A questão é debatida há pelo menos dois milênios e não estamos nem perto de uma resposta definitiva. Esse conceito reúne numa só trama alguns dos mais cabeludos problemas filosóficos, como a natureza do universo (se ele é ou não determinado), a causalidade e se o homem é ou não um agente moral.
O leitor de boa memória se lembrará de que, no final de minha coluna anterior, comentando o caso da pequena Isabella, sugeri que o tal do livre arbítrio talvez seja menor do que exigiriam as noções mais comuns de justiça.
A pergunta fundamental é: somos livres para agir como desejamos? Suas implicações não são triviais. Se nossas ações são determinadas, seja pela biologia, pela física ou por Deus, como responsabilizar alguém por seus atos?
Assim, a primeira parte do problema é física. Importa saber se tudo o que ocorre no mundo é uma fatalidade ou se há espaço para decisões autônomas. Quem melhor colocou a questão foi o célebre matemático francês Pierre-Simon de Laplace (1749-1827), ao propor, na introdução ao seu "Essai philosophique sur les probabilités", um experimento mental que mais tarde ficou conhecido como "o demônio de Laplace": "Podemos ver o estado presente do universo como o efeito de seu passado e a causa de seu futuro. Um intelecto que em dado momento conhecesse todas as forças que colocam a natureza em movimento, e as posições de tudo aquilo de que a natureza é composta, se tal intelecto também fosse capaz de submeter esses dados a análise, ele abarcaria numa única fórmula tanto os movimentos dos maiores corpos do universo como os do menor átomo; para este intelecto nada seria incerto e o futuro assim como o passado estariam presentes diante de seus olhos".
Bem, se acreditamos como Laplace que todos os eventos presentes e futuros são o resultado do passado do universo em combinação com as leis da natureza, então somos deterministas. É uma posição especialmente confortável para os que não querem carregar em suas costas o peso de decisões morais. Se tudo o que se passa no mundo é o resultado de uma fórmula matemática, culpar alguém por um assassinato faz tanto sentido quanto responsabilizar o leão por devorar a gazela ou um asteróide por ter dizimado os dinossauros.
Na mesma situação se encontram aqueles que postulam a existência de um Deus perfeitamente onisciente e onipotente. Tal entidade atrairia para si todas as culpas do universo.
Deixemos, porém, a teologia de lado e voltemos à física. Ainda que numa versão mais nuançada, Albert Einstein pensava mais ou menos como Laplace. É por isso que tinha horror à mecânica quântica (na qual as previsões estão limitadas a mera probabilidade), sobre a qual sentenciou: "Deus não joga dados".
A "solução" de Einstein para sustentar um universo determinista sem não atirar a noção de responsabilidade num buraco negro foi rebaixá-la um bocadinho: "Um ser humano pode perfeitamente fazer o que quiser, mas não pode desejar o que quer". Aqui, o físico alemão acompanha o bom e velho Schopenhauer. Somos todos filhos da necessidade.
Só que a mecânica quântica se firmou. E não apenas como uma ignorância provisória, como desejava Einstein. Cada vez mais o "mainstream" da física vai se convencendo de que a impossibilidade de determinar ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula está na natureza da matéria, sendo um dado da realidade e não uma simples incompletude da teoria. Com isso, o demônio de Laplace, se não sai de cena, ao menos passa para um segundo plano. O mesmo, suspeito, ocorre com o Deus das religiões monoteístas, daí que escolas dominicais não ensinem física quântica.
Mas será que a consolidação de um universo não inteiramente determinado basta para salvar a responsabilidade moral de seus demônios? Talvez não. Achados no campo na neurociência nos fazem ficar com a pulga atrás da orelha.
Num experimento seminal dos anos 80, Benjamin Libet, da Universidade da Califórnia, ligou seus alunos a aparelhos de eletroencefalograma e demonstrou que a atividade cerebral inconsciente que faz alguém mover o braço, por exemplo, precede em pelo menos meio segundo a "decisão consciente" de mexer o braço.
A partir daí, neurocientistas desenvolveram vários experimentos semelhantes, obtendo a corroboração dos resultados. Hoje são mais ou menos unânimes em afirmar que o livre arbítrio não é mais do que uma ilusão, mais ou menos como a consciência, que, embora não passe de um efeito colateral de vários sistemas cerebrais ligados em rede, nos leva sinceramente a crer que somos algo diverso da matéria que nos compõe. A maioria da humanidade é dualista (se vê como uma mistura de corpo e alma), só uns poucos materialistas ateus somos devidamente monistas (não somos mais do que o amontoado de impulsos eletroquímicos produzidos por nosso corpo).
Nosso livre arbítrio seria mais ou menos como um tique nervoso ou a necessidade que um viciado tem de conseguir sua droga, movimentos que ficam a meio caminho entre o voluntário e involuntário. Temos aí uma boa seara para advogados de defesa, a exemplo dos alquimistas em busca da pedra filosofal, tentarem extrair o habeas corpus universal.
Será que estamos assim condenados a descartar toda idéia de justiça possível? Talvez não. Afinal, existem viciados que conseguem superar sua compulsão. A resposta não chega a ser um segredo. Se, por um lado, ele quer a droga (desejo de primeiro grau); por outro, ele sabe que o vício lhe faz mal e pretende livrar-se dele (desejo de segundo grau). O livre arbítrio talvez exista como um poder de veto dos desejos de segundo grau sobre os de primeiro. Não é à toa que os mais relevantes dos dez mandamentos assumem a forma "não + verbo", como em "não matarás", "não cobiçarás a mulher do próximo".
Os filósofos norte-americanos Harry Frankfurt e Daniel Dennett desenvolvem algumas idéias interessantes de como reconciliar um universo em grande parte determinista (nossas ações sociais, até prova em contrário não são regidas por leis quânticas) com uma versão ainda que mitigada do livre arbítrio. É o salvamento do compatibilismo.
Segundo Dennett, nós temos o poder de veto e o poder de veto sobre o veto, além de boas noções de causalidade, que nos permitem imaginar cenários futuros e projetar-lhes conseqüências de decisões passadas. Não é necessário um milagre para ter responsabilidade.
Como eu disse no início deste texto (que, por sinal, já está ficando mais longo do que eu teria desejado), não disponho de uma resposta definitiva para o problema do livre arbítrio. Só o que procurei aqui foi lançar, de forma infelizmente meio caótica, algumas luzes sobre sua complexidade e alcance. Mal resvalei em todas implicações e pressupostos. Acho, entretanto, que as idéias esboçadas já bastam para que reavaliemos as bases da noção mais comum de justiça que circula por aí.
Nossas inseguranças em relação ao livre arbítrio, que não são poucas, já deveriam nos fazer abandonar o conceito de justiça retributiva. Se não estamos muito certos do nível de controle que temos sobre nossas ações e se é até mesmo possível que cada uma de nossas decisões já esteja escrita desde o início dos tempos, então não faz sentido punir alguém como retribuição à falta cometida. Mesmo que houvesse um Deus a nos dizer insofismavelmente o que é certo e o que é errado, seria preciso não torná-Lo demasiado poderoso, ou Ele se tornaria o responsável último por todos os nossos pecados.
Além da contradição interna à idéia de um deus onipotente e bondoso, temos como subproduto que a justiça, mais do que para expiar culpas, se presta a evitar que o próprio criminoso e outras pessoas voltem a delinqüir. A meta deixa de ser "fazer justiça" (uma completa inutilidade) e passa a ser organizar melhor a sociedade.
Se, por um lado, essa noção utilitarista salva algo da nossa posição de agentes morais, ela não nos eleva para muito além dos cãezinhos pavlovianos, que fazem o que deles se espera sob a compulsão de eletrochoques e outras artimanhas da necessidade.
Assim, antes de sair por aí linchando suspeitos de crimes hediondos ou de pedir uma segunda porção daquela sobremesa deliciosa que entope artérias, pense nas conseqüências. A diferença importante entre nós e os cãezinhos de Pavlov é que projetamos o futuro mais longe.
Hélio Schwartsman (Folha Online)