"À toa..."
No domingo, o caderno "Empregos" assinalava que 56 semanas é o tempo médio para que um desempregado encontre trabalho. Haja ânimo.
As porcentagens variam segundo o índice escolhido, mas, de qualquer forma, é provável que todos os paulistanos conheçam um amigo ou um parente que, a cada manhã, olha no espelho e se pergunta por que fazer a barba ou por que escovar o cabelo.
Estou lendo um livro recente, que trata dos efeitos das adversidades externas sobre nossa saúde mental, Adversity, Stress and Psychopathology [Adversidade, Estresse e Psicopatologia], de Bruce Dohrenwend (organizador). A perda do emprego está na lista dos piores fatores adversos, com as catástrofes naturais, a morte de uma pessoa amada, o estupro, a doença grave, a separação ou o divórcio.
Nenhuma novidade nisso: é fácil entender que a perda do emprego seja fonte de angústia, de depressão e mesmo, às vezes, de "comportamentos anti-sociais": alcoolismo, violência familiar e condutas criminosas. Compreendemos imediatamente, por exemplo, o desespero do provedor (ou da provedora) que não consegue preencher as expectativas de seus dependentes. "Se a família não pode mais contar comigo, perco minha razão de ser."
Mas há algo mais, que talvez faça do desemprego a adversidade mais danosa para nossa saúde mental. Preste atenção: no balcão de um boteco, como na mesa de um jantar, se seus vizinhos forem desconhecidos, a primeira pergunta não será "quem é você?", mas "o que você faz na vida?". Se eles tiverem uma intenção alegre, talvez tentem primeiro descobrir seu estado civil. Fora isso, o interesse pela sua identidade se apresentará como interesse por seu papel produtivo.
Ora, tanto você como seu vizinho (ou vizinha) viverão essa conversa inicial como um momento, de alguma forma, falso. Pois todos sabemos que somos mais do que nosso ofício: temos histórias, amores, esperanças, interesses, paixões e crenças que, de fato, expressariam muito melhor quem somos. Ao trocarmos cartões de visita, mentimos por omissão. Identifico-me como executivo, bancária, escritor, médica, mecânico, mas quem sou eu? A poeta da meia-noite? O sedutor das salas de bate-papo na internet? O piadista do bar da esquina? O pai preocupado com a doença do filho? A mulher que, a caminho do escritório, se agacha e conversa com o sem-teto que vive na calçada? O homem que cantarola Dorival Caymmi tomando banho?
Não é o caso de sermos nostálgicos. Num passado não muito remoto, cada um era definido por sua proveniência, e as perguntas iniciais diziam: quem foram seus pais e antepassados? Onde você nasceu? Quais são as dívidas que você herdou?
Prefiro os dias de hoje, em que são nossas próprias façanhas que nos definem. É uma escolha que deveria nos deixar mais livres, mas acontece que a praticamos de um jeito estranho: junto com os laços que nos prendiam às nossas origens e ao passado, nossa vida concreta também é silenciada na descrição de nossa identidade. E nos transformamos em sujeitos abstratos, resumidos por nossa função na produção e na circulação de mercadorias e serviços.
Conseqüência: o desemprego nos ameaça com uma perda radical de identidade. E não adianta observar que, afinal, nos sobra o resto, ou seja, toda a complexidade de nosso ser. Tipo: "Perdi meu emprego, mas ainda sou pai amoroso, amante, esposo, amigo, leitor de Saramago e corintiano ou palmeirense". Não adianta porque, em regra, já renunciamos há tempos a sermos representados por nossa vida concreta.
Não é por acaso que as mulheres lidam com o desemprego melhor que os homens, como mostra uma pesquisa recente de Lucia Artazcoz e outros, Unemployment and Mental Health: Understanding the Interactions Between Gender, Family Roles and Social Class [Desemprego e Saúde Mental: Para Compreender as Interações Entre Gênero, Papéis Familiares e Classe Social], American Journal of Public Health, 2004, 94. Duas constatações de Artazcoz: 1) o impacto do desemprego é maior nos homens casados do que nos celibatários ("se não traz o feijão, você ainda é o pai?") 2) as mulheres casadas com filhos, ao perderem o emprego, sofrem menos que os homens e menos que as celibatárias. Explicação: para as mulheres, o exercício da maternidade ainda constitui uma identidade possível. "O que você faz na vida?". "Tomo conta de meus filhos." Para os homens, essa resposta não basta.
Enfim, espera-se que a economia crie empregos. Mas os poetas e os saltimbancos também têm uma tarefa crucial: são eles que podem, aos poucos, convencer a gente de que é nossa vida concreta que nos define, não nossa função produtiva.
P.S.: Um sonho recorrente propõe que reaprendamos a colocar raízes, ou seja, a definir nossa identidade por uma parcela de terra que nos sustentaria, que seria nossa e à qual pertenceríamos. Em 1932, Henry Ford, consternado pela crise que assolava os EUA, aderiu ao movimento da volta à terra. Declamou: "A terra! É lá que estão nossas raízes. Nenhum seguro-desemprego pode se comparar à aliança entre um homem e seu pedaço de terra". Curioso precursor de João Pedro Stedile, ele imaginava (e nisso tinha razão) que, se cada um mantivesse uma relação íntima com seu lote de terra, o desemprego poderia ser um aperto econômico, mas não uma queda no vazio. Pena, já era tarde demais para isso.